45 anos de controvérsia sem perder a pose. Você ama ou odeia ele. O primeiro trovador da era do rock. O primeiro vendido da era do rock. O cara que pôs guitarra no folk. O cara que pôs um pros Beatles. O cara que mudou o mundo, o único que conseguiu de fato mudar o mundo com sua "voz chata e rinitente", seu violão e sua gaitinha. Não precisou mais que isso pra implodir a revolução nos anos 60. Talvez a resposta pra isso tudo esteja soprando no vento, porque os tempos estão mudando e afinal o trem vem vindo devagar e entender essa figura e sua importância talvez nem caiba aos meros mortais. Porém, ele soube como ninguém elevar o espírito do Rock n´Roll a outro patamar. Robert Allen Zimmerman ensinou o rock a pensar, a falar o que pensa e continuar de pé para sustentar isso. Segue a entrevista..... Revista Bizz nº 7 fevereiro de 1986.
Poeta laureado, profeta num casaco de motoqueiro. Vagabundo misterioso. Napoleão em andrajos. Um judeu. Um cristão. Um milhão de contradições. Um completo desconhecido, como uma pedra rolante.
Foi analisado, classificado, categorizado, crucificado, definido, dissecado, inspecionado e rejeitado, mas nunca completamente entendido.
Ele entrou na mitologia em 1961, com uma guitarra e uma gaita de boca, um cruzamento entre Woody Guthrie e Little Richard. Era o primeiro cantor de folk punk. Introduziu a música de protesto no rock. Tomou as palavras mais importantes que a melodia, mais importantes que a batida. Sua voz enfumaçada e nasal e seu fraseado sexy são únicos. Pode escrever canções surrealistas com uma lógica toda própria e, com a mesma facilidade, baladas simples, vindas diretamente do coração. Pode tirar a escuridão da noite e pintar o dia claro de escuro.
Ele provavelmente poderia ter se tornado o maior símbolo sexual desde Elvis, mas não optou por isso. Depois veio Mick Jagger. Os Stones, Beatles, Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, todos lhes prestaram homenagem.
No auge do flower power, quando todo mundo embarcava na onda orientalista, Dylan foi para o Muro das Lamentações, em Jerusalém. Uma década depois, era um cristão novo, ou assim o parecia, gravando discos com canções religiosas. Não é que Dylan subitamente tenha se tornado menos político ou mais espiritual. As referências bíblicas sempre estiveram em suas canções. Quem sabe? Suponha que uma revolução espiritual esteja em curso e que o rock seja apenas um prelúdio de alguma coisa mais. Quem seria um melor profeta que Dylan?
Dylan é como um de seus versos. Vive simplesmente, numa casa confortável numa propriedade escondida na Califórnia, com um bando de galinhas, cavalos e cachorros. O fato de que está mais visível agora e fazendo coisas comuns, como ganhar Grammies, fazer vídeos e mesmo esta entrevista, não o torna menos misterioso.
Apenas aumenta o mistério.
(Nota do brógui: Essa entrevista foi formatada de um jeito diferente, ao invés do clichê de perguntas e respostas, o autor preferiu separá-la em tópicos.)
O verdadeiro eu
Às vezes o "você" em minhas canções sou eu falando comigo. Em outras vezes, posso estar falando com outra pessoa. Se eu estiver falando comigo numa música, não vou parar tudo no meio e dizer: OK, estou falando com você. Você é que tem de adivinhar quem é quem Uma porção de vezes, é "você" falando com "você". O "eu", como em "eu e eu", também muda. Pode ser eu, ou poderia ser o " eu" que me criou. e, ainda poderia ser outra pessoa que está dizendo "eu". Quando digo "eu" neste momento não sei de quem estou falando.
Se você quer falar comigo, vá em frente e fale
Um monte de gente da imprensa quer falar comigo, mas nunca o faz, e por alguma razão há este grande mistério. E me culpam. Vende jornais, eu acho. Notícias são um negócio. Não tem nada que ver comigo pessoalmente, por isso eu não entro mesmo nessa. Quando penso em mistério, não penso em mim mesmo. Penso no universo, coisas como por que a lua sobe quando o sol some? Ou, por que as lagartas viram borboletas?
Não gosto de falr sobre mim mesmo. As coisas que tenho a dizer, sobre assuntos como favelas, salvação e pecado, desejo, criminosos à solta e crianças sem esperança, isto as pessoas não gostam de publicar. De qualquer maneira, eu não tenho normalmente qualquer resposta para as perguntas que elas publicaram.
Problemas com o videoclip
Os vídeos para mim não têm personalidade. Tudo bem com os últimos que fiz com o Dave Stewart (Eurythmics). Nos outros não sei, só recebia ordens. Não dei muita atenção a esses vídeos. Você tem de fazê-los se grava discos. Tem mesmo. Mas tem de tocar ao vivo. Não dá para se esconder atrás dos vídeos. Acho que, quando esta onda de vídeo diminuir, as pessoas vão saber quem toca ao vivo e quem não.
Highway 61 Revisited
Todo o tempo as pessoas me perguntaram sobre os anos 60. Se você quiser saber sobre os anos 60m leia Armies of the Night de Norman Mailer, ou leia Marshall Mc Luhan ou Abraham Maslow. Muitas pessoas escreveram de maneira intrigante sobre os anos 60 e falaram a verdade. Os cantores foram apenas uma parte disso. Eu não tenho tanto a dizer a eles. Lembro com muita clareza de algumas coisas. Outras são um tanto embaçadas, mas eu consigo focar onde estava e o que estava fazendo, se for forçado a isto. É claro que há pessoas que conseguem se lembrar das coisas em detalhes vívidos. Ginsberg tem este talento e Kerouac tinha muito este talento. Kerouac nunca se esquecia de nada, por isso poderia escrever qualquer coisa.
Pesadelo motopsíquico
Em 1966 sofri um acidente de moto e acabei com diversas vértebras quebradas e uma concussão. Isto me derrubou por um tempo. Eu não podia continuar fazendo o que vinha fazendo. Eu estava muito ferido antes do acidente acontecer. Ele me assentou, e eu consegui ver as coisas de uma perspectiva melhor. Eu não estava sendo nada em qualquer espécie de perspectiva. Eu provavelmente acabaria morrendo se prosseguisse do jeito que vinha vindo.
Blowin´in the wind
A política mudou. O tema mudou. Na década de 60, havia um monte de gente saindo de escolas onde haviam aprendido política com professores que eram pensadores políticos, e estas pessoas ocuparam as ruas. A política que aprendi, aprendi nas ruas, porque era parte do meio ambiente. Eu não sei onde as pessoas ouviriam estas coisas agora. Agora cada um quer ficar na sua. Não há unidade. Há o dia da marcha dos porto-riquenhos, o dia dos poloneses, a semana alemã, o dia da marcha dos mexicanos. Você tem todos estes tipos diferentes de pessoas agitando suas próprias bandeiras, e não há unidade entre todas essas pessoas. Pelo que posso ver, esta é a diferença entre aquela época e agora.
O que eu mesmo quero fazer
Enquanto eu continuar gravando e tocando, o que ainda não acabei de fazer, tenho que acompanhar o panorama do momento. Nao sou um Pete Seeger. Já fiz aquilo uma vez ou outra, quando levei duas, três mil pessoas através de minhas músicas, mas não fiz como o Pete Seeger. Ele é um mestre nisso, a levar uma massa de gente a cantar uma música que nem está em sua linguagem. Eu acho que ele poderia ter com as pessoas a força que Sting tem, porque poderia fazê-las sentir que importam, que fazem sentido para elas mesmas e que estão contribuindo com alguma coisa. Ver Tears for Fears é como ser espectador numa partida de futebol. Pete é quase que um curandeiro tribal. Os performers do rock não são assim. Eles estão só realizando as fantasias dos outros.
As grandes revelações
Quando alguém faz uma coisa em grande estilo, é sempre rejeitada em casa e aceita em outro lugar. Isto poderia, por exemplo, ser aplicado a Buda. Quem foi Buda? Um indiano. E quem sao os budistas? Chineses, japoneses, povos da Ásia. É a mesma coisa com o fato de Jesus ser um judeu. A quem ele atraía? Atrai pessoas que querem entrar no céu em grande estilo. Mas algum dia a verdadeira história vai se revelar, e por esta época as pessoas estarão prontas para ela, porque as coisas caminham nesta direção. Você pode até sair dizendo isto agora, mas o que importa? Vai acontecer de qualquer jeito.
O primeiro som elétrico
A primeira vez que toquei um som elétrico na frente de um grande público foi no Newport Folk Festival, em 1965. Mas eu tinha um disco de suceso nas lojas (Bringing it All Back Home), e por isso não sabia por que as pessoas esperavam que eu fizesse algo diferente. Eu tinha consciência de que tinha gente brigando na platéia, mas não conseguia entender. Fiquei um tanto embaraçado com a bagunça, porque ela aconteceu por razões erradas. Quer dizer, você pode fazer algumas coisas lastimáveis na vida e as pessoas vão te perdoar. Daí você faz algo que considera nada mais que natural e as pessoas reagem com este comportamento agressivo. Mas eu não dou muita atenção a isto.
Minha vida é um livro aberto
Fora uma canção como Positively 4th Street, extremamente unidimensional
, e que eu gosto, não costumo normalmente me purgar escrevendo sobre qualquer tipo de,digamos assim, relacionamento. Eu não tenho os tipos de relações baseadas em mentiras; não que eu nao as tenha tido. Tive tantas quanto todo mundo, só que não as tenho há muito tempo. De maneira geral, as coisas entre mim e outra pessoa são cara a cara. Do tipo minha vida é um livro aberto. E eu escolho estar envolvido com as pesoas com as quais estou envolvido. Elas não me escolhem.
Outro lado de Dylan
Nunca li Freud. Nada do que ele disse jamais me atraiu, e aco que ele iniciou um montão de nonsense com este negócio de psiquiatria. Não acredito que a psiquiatria ajude ou já tenha ajudado alguém. Acho que esta é uma grande fraude(sem trocadilhos) com o público. Bilhões de dólares trocaram de mãos, e poderiam ter sido usados para propósitos melhores. Um montão de gente tem problemas com seus pais até os 50, 60 ou 70 anos. Não conseguem se livrar dos seus pais. Como na música de John Lennon, "Mother": "Mãe, eu tive você, mas você nunca me teve". Não consigo imaginar isto. Sei que muitas pessoas têm este problema. É claro que tem uma orção e órfãos no mundo. Mas esta não é minha experiência. Tenho uma forte identificação com os órfãos, mas fui educado por pessoas que sentem que os pais, sejam casados ou não, devem ser responsáveis por seus filhos, que os filhos devem aprender um ofício, e que os pais devem ser punidos pelos crimes de seus filhos.
Na verdade, fui criado mais por minha avó. Era uma mulher fantástica. Eu a amava tanto e sinto muito a falta dela. Mas, voltando um pouco, tudo tem de ser chacoalhado, e será. Nunca tive quaisquer barreiras para chegar no que me era querido. Se eu tinha qualquer vantagem sobre os outros, era a vantagem de estar só e poder pensar e fazer o que quisesse.
Patti Smith disse que eu era Rimbauld em outra encarnação. Não sei se ela está certa ou errada, mas, é claro, Patti sabe um monte de detalhes profundos dos quais posso não estar consciente. Ela pode estar ligada em algo que pode estar um pouco além de mim. Conheço pelo menos uma dúzia de mulheres que me dizem que forma a Rainha de Sabá. E conheço uns poucos Napoleões e duas Joanas D´arc e um Einstein.
O Tipo Feminino
Sempre fui atraído por certo tipo de mulher. É a voz, mais do que qualquer coisa. Ouço primeiro a voz. É este som que eu ouvia quando estava crescendo. Quando tudo parecia oco e vazio, eu ouvia durante horas as Staple Singers. É este tipo de canto gospel. Ou a voz dos Crystals, de Clyde King, de Memphis Minnie, este tipo de som. Há algo nesta voz que quando a escuto paro o que estou fazendo, seja lá o que for. Um corpo é um corpo. Uma mulher pode ser surda, idiota,mutilada e cega e ainda possuir alma e compaixão. É isto que importa pra mim. Dá pra ouvir na voz.
Quem você gostaria de entrevistar?
Um monte de pessoas que não estão vivas: Hank Williams, Apollinaire, José da bíblia, Marilyn Monroe, Paulo Apóstolo, talvez John Wilkes Booth ( o que matou Abraham Lincoln), talvez Gogol. Eu gostaria de entrevistar pessoas que morreram deixando atrás uma grande confusão não resolvida, que deixaram por séculos as pessoas especulando. Falando de gente viva, quem há para entrevistar? Fidel Castro? Gorbatchev? Reagan? O estrangulador de Hillside? O que é que eles têm a dizer? Eu não me importo com o destino do homem mais rico do mundo. Eu sei qual é a sua recompensa. Eu gostaria de deixar em seu lguar qualquer pessoa que tenha feito um trabalho que eu admiro. Não forço muito para saber como é que as pessoas chegaram no que chegaram. Assim, o que resta? Apenas o cotidiano de alguém. Coisas como: "Porque é que você não come peixe?" Isto realmente não me daria respostas para coisas sobre as quais medito.
Pessoal ou impessoal
Uma vez eu li um livro de cartas de Nataniel Hawthorne para uma garota e elas eram extremamente privadas e pessoais. Não senti que havia qualquer coisa minha nas cartas, mas pude me identificar com o que elas diziam. Muito de mim cruza minhas canções. Eu escrevo algo e digo a mim mesmo: posso mudar isto, posso tornar isto tão pessoal. Em outras ocasiões digo: não vou deixar isto num nível tão pessoal, e se alguém quiser fuçar na letra e fazer sua cabeça sobre que tipo de cara eu sou, isto é com ele. Outras vezes penso assim: acho que vou disfarçar isto. Por que é que vou querer que alguém pense sobre o que estou pensando, se não é para seu benefício?
Tipos interessantes
Miles Davis é minha definição de um cara cool. Eu adorava vê-lo em pequenos clubes tocando seus solos, virando as costas para o públicom abaixando o trumpete e saindo do palco para deixar a banda rolare voltar no final para tocar algumas notas. Eu fiz isto em alguns shows. As pessoas pensaram que eu estava doentem, ou algo assim.
O último disco que comprei foi de Lucille Bogan. Era uma cantora de blues da qual tinha ouvido falar, mas não sabia que gravava. Não compro muitos discos contemporâneos. Não fui à loja comprar o disco pessoalmente. Conheço alguém que trabalha numa loja na cidade e telefonei para ele pedindo para separar o disco. Não, não fui buscá-lo, mas alguém o fez.
Tenho um bom entendimento com todas as mulheres que estiveram em minha vida, quer eu as veja ocasionalmente ou não. Temos ainda as melhores das amizades.
Eu quero fazer um filme
"Tight Connection to my Heart" é uma música muito visual. Eu quero fazer um filme sobre ela. Não acho que ele será feito. Acho que vai ficar pelo caminho, mas, de todas as músicas que já escrevi, esta é a que tem personagens que podem se identificar com ela. o que quer que isto queira dizer. Eu não sei. Talvez eu esteja tentando torná-la mais importante do que é, mas vejo pessoas nela.
A censura nos discos
Não acho que a censura se aplica a mim. Se aplica mais aos artistas da parada de sucessos. As pessoas que gravam hits podem estar preocupadas com ela, mas eu não tenho o tipo de discos nos quais deva me preocupar com o que digo. Vou escrever qualquer velha canção que me der na telha. Eu não compro nenhum desses discos, e nem mesmo gosto da maioria dessas músicas. Não me importaria se as músicas que tocam no rádio recebessem este ou aquele tipo de censura. Mas não acho que isso seja certo. Sou oposto à censura. Acho que qualquer música que você ouve pode ser ouvida de um ponto de vista diferente do que ela é. Há anos que as pessoas acham coisas em minhas músicas.
As melhores canções
As melhores músicas que você escreve são as músicas sobre as quais você nada sabe. São um escape. Eu não faço muito isso, talvez porque seja mais importante lidar com o que está acontecendo do que colocar-se num lugar onde tudo que se pode fazer é imaginar alguma coisa. Se você pode imaginar algo e não teve aquela experiência, o que é normalmente verdade é que alguém já passou por ela e vai se identificar.
Na verdade estou pensando nas histórias de Edgard Allan Poe. Se você pensar sobre sua vida, vai saber que ele na verdade não experimentou nada do que escreveu. Mas algumas histórias fantásticas saíram de sua imaginação. Como se pensasse: "Aqui estou eu encalhado nesse emprego do qual não consigo sair. Trabalho como funcionário público, e o que vou fazer depois? Odeio esta existência." Daí o que ele faz? Senta-se no sotão, escreve uma história e todo mundo acha que isso significa que ele é um cara estranhíssimo. Não, eu não acho que isto seja uma forma ilegítima de tratar as coisas, mas aí você pensa em alguém como Herman Meville, que escreve a partir da experiência, como em Moby Dick. Acho que há um tanto de fantasia no que escreveu. Dá para vê-lo cavalgando numa baleia? Eu não sei. Eu nunca fui para a faculdade fazer curso de literatura. Posso apenas tentar responder a estas questões porque supõe-se que eu seja alguém que conheça algo sobre escrever, mas a verdade é que não entendo muito disto. De qualquer maneira, eu não sei o que há para se saber sobre isto.
Comecei a escrever porque já estava cantando. Acho que isto é uma coisa importante. Comecei a escrever porque as coisas estavam mudando o tempo todo e havia necessidade de se escrever uma certa canção. Comecei a escrevê-las porque queria cantá-las. Se elas não estivesse escritas, não teria começado a escrevê-las. Não é algo para o que tivesse me preparado, mas cantei muitas músicas antes que compusesse alguma. Acho que isso também é importante.
Orgulho, pra quê?
Nunca consegui perceber a seriedade no orgulho. As pessoas falam, agem e vivem como senunca fossem morrer. E o que é que elas deixam para trás? Nada a não ser uma máscara.
Baixe:
Bringing it all back home (1965)
Modern times (2006)