segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A PRODUÇÃO DE ARTE E O HARDCORE:Um breve esboço sobre a produção artística dentro da cena. Por André Lopes "Alemão"

Por que ler um texto comprido desses, se eu posso ir pra net baixar discos?

 

Boa pergunta, meu chapa, boa pergunta... Digamos que tem uma cena de hardcore, punk e metal por aqui que está pedindo socorro. Digamos também que já existe um debate sobre isso por aí, na internet, nas ruas, nas lojas de rock. Contribuir com isso é bom. Não é obrigatório, isso é lógico. Participar das discussões sobre a “cena”, perguntar se ela existe, se ela vai bem, se está tudo em ordem, se poderia ser melhor, apontando alguns rumos para esse papo, nos deixa com a sensação de estar cumprindo parte da tarefa. Tarefa esta que alguns se infligem. Mas, lotar 160 GB de discos e filmes é, de verdade, mais legal. E enquanto parte se dedica a esta atitude, temos um colapso no hardcore punk de Goiânia.

Até onde podemos ver este colapso como sendo resultado direto de fatores internos da dita “cena”? Como entender a produção de arte dentro do hardcore punk? Este entendimento realmente se transformará em ferramenta para atuar na cena de forma concreta?

Procuramos afastar qualquer pretensão acadêmica. Este texto está direcionado à todos os públicos envolvidos com a cena hardcore punk, de modo a não sublimar demais uma discussão que tem por obrigação ser clara e direta.

Com este trabalho, a provocação será feita para quem participa, de uma forma ou de outra, da produção artística hardcore punk na cidade.

Num primeiro momento, teremos alguns apontamentos históricos sobre o punk e hardcore, a fim de nos situarmos temporalmente, no item “O que é hardcore? Apontamentos históricos”. Nada muito detalhado, pois não é essa a finalidade. Depois, um breve debate sobre a arte, sua função social e o hardcore punk, tentando definir sobre quais aspectos podemos entender a produção artística dentro desta vertente do rock, no item “A produção de arte e o hardcore”. Há, logo após, em “Cena: o que seria isso?” um esboço de um breve conceito – o que ela pode ser na ótica do hardcore punk, sob o prisma da produção artística. As provocações principais estão apontadas no item seguinte, “Levantando aparentes problemas na cena punk hardcore”. Considerações finais sobre “Goiânia Rock City” figuram no último item do trabalho.

Esta contribuição pretende ser um pontapé inicial, e não guarda para si a pretensão de ser a voz da verdade. Qualquer discordância será bem vinda, seja feita por publicação física, por meio eletrônico, pessoalmente, enfim.

 

André Lopes “Alemão”.


O que é hardcore? Apontamentos históricos.

 

Há de fato uma cartilha do hardcore, um manual explicativo que nos diga como ser um “membro do movimento”? De maneira alguma. Não se pode relativizar demais uma possível definição sobre o que é hardcore, e não seria honesto ditar aqui um conceito rígido. Podemos identificar o surgimento do hardcore nos EUA, em 1980. A data é deveras controversa, e há citações também controversas sobre quem foi a banda pioneira do novo subgênero do punk: a canadense DOA, os estadunidenses do Black Flag, ou o Middle Class, enfim.

O termo surgiu na já multi-fragmentada cena punk norte americana, onde posições ideológicas diversas haviam surgido desde 1974, data símbolo do início do punk. Entre niilistas, punk rockers, anarcopunks, e dezenas de outras sub-classificações, o hardcore se diferenciava inicialmente por apresentar uma nova estética musical: o tempo (compasso) foi acelerado, a melodia se tornou ainda mais simples, em comparação com o punk rock, e a textura ficou mais áspera, agressiva. Liricamente, as primeiras bandas de hardcore preferiram adotar temas mais políticos e críticos, ligados ao cotidiano dos subúrbios das grandes cidades estadunidenses. Era uma espécie de resgate da cena punk setentista. Na Europa, talvez possamos ser um pouco mais certeiros ao indicar o início do que seria o hardcore: a banda britânica Discharge. Deveras mais agressiva do que qualquer outra coisa que já havia sido gravado no R.U., o Discharge mantinha a moda punk (ou visual, como preferem os punks), a acidez lírica e apresentava a rapidez musical que caracterizava o hardcore.

Nunca houve um manifesto hardcore universal. Ninguém nunca se preocupou em limitar uma definição e inaugurar um movimento de cunho social. O hardcore é espontâneo, nascido de um contexto onde a velocidade das transformações culturais já era enorme. Há gente por aí que chama esse momento histórico de pós-modernidade. Nomenclaturas à parte, o hardcore surgiu inicialmente como uma reação ao punk, que dava sinais de “decadência”, na opinião de muitos. Era necessário voltar a chocar, a questionar padrões culturais, evitar que a contra-cultura punk fosse completamente absorvida pela mídia de massa, como ocorria na época, e apontar rumos possíveis, já que o punk tradicional estava mergulhado numa maré de descrença e ceticismo. A partir de 1981 nos EUA e Europa, já notamos muitos artistas produtores de fanzines, bandas, programas de rádio, a abraçar causas mais positivas em relação ao posicionamento que o rock mais extremo deveria tomar frente aos problemas cotidianos. Neste aspecto, o punk e o hardcore começavam a se distanciar, de um modo geral. O discurso em defesa do caos social elaborado nos fins dos anos 70 (“There’s no future for you”) pelo punk era gradativamente abandonado a medida que o hardcore avançava. Um bom exemplo disso foi a primeira onda dita “straight edge”, que procurava trazer aspectos éticos (ou morais, na visão de outros) à cena musical punk hardcore estadunidense.

Não há uma obrigatoriedade de vinculação política, partidária, ideológica, dentro do punk e hardcore. Sendo uma manifestação de contra-cultura urbana, ambos são, antes de mais nada, uma estética dentro de um vasto universo de produção artística, sendo possível usar esta estética para fins diversos. Desde produção cultural de massa, para fins de mercado, até intervenções políticas de cunho crítico. Basta lembrarmos da enorme vontade demonstrada pelos Ramones de serem aceitos no mainstream, a partir de 1977, para termos exemplo de como a estética punk pode ser usada para vender cultura. Ou ainda, por outro lado, citarmos a resistência de diversas bandas européias e americanas que se mantiveram fiéis ao conceito básico do punk: faça você mesmo. Black Flag, Dead Kennedys, The Varukers e outras, provaram que era possível produzir arte sem vínculo a um mercado coercitivo, que pudesse modificar a essência da produção. A cultura punk hardcore está mais comumente ligada a esta atitude de negação dos padrões mercadológicos na produção de arte. Produzir arte transgressiva, livre, de forte cunho ideológico, embora multifacetado, ligada a um mercado específico que adote outro parâmetro, que não o lucro puro e simples. Numa dinâmica econômica em que a produção artística contra-hegemônica é transformada, cooptada e se adapta ao mercado, se transformando em mercadoria, como se via desde os anos 50, o grande nó do punk hardcore foi se manter a margem deste processo, e ao mesmo tempo, sobreviver como via de contestação. Ou seja, ter espaço para expressar os vários tipos de discurso dentro do “movimento”, em um mundo que não estava muito afim de ouvir o que a molecada suburbana estava gritando. Neste contexto, foi de suma importância o surgimento de gravadoras, fanzines, rádios, editoras independentes e que tais para a propagação da estética/ ideologia punk hardcore em fins dos anos 70. Surgia a principal marca da cultura punk: o “faça você mesmo”. Se parte do punk havia sido digerido pela sociedade do consumo, anos mais tarde, era hora de incentivar a produção que a grande mídia ignorava, por ter uma aparência muito repugnante para os padrões de mercado. Diga-se de passagem, propositadamente “repugnante”, por se tratar de produção cultural contra-hegemônica. Nasciam então os “cascas-grossas”, um novo gás para o punk.

Assim, apoiados por uma ampla rede alternativa de produção completamente independente, os produtores desta primeira leva assistiram a música punk hardcore se seccionar em dezenas de sub-gêneros, a partir dos anos 80. Fenômeno típico do período histórico. A fusão do hardcore punk com o heavy e thrash metal também ocorre nos anos 80, produzindo um fenômeno interessante: como as cenas destas vertentes do rock passavam por dificuldades bem semelhantes, nos EUA e na Europa, passaram a organizar a produção cultural de forma conjunta. Era o embrião do crossover. O resto é história.

 

A produção de arte e o hardcore.

 

Conceituar o que é arte é outro desafio que não vamos assumir aqui. Tampouco podemos considerar que tudo seja arte, como arriscaram alguns por aí. A arte é produto da leitura sobre a realidade humana, em seus diversos contextos, que se exprime de uma forma sublimada. Tem um porquê de existir. “Nascer a cada momento para a eterna novidade do mundo”, diria Fernando Pessoa, em uma das melhores definições que conheço sobre o tema.

A arte está no plano da construção das ideologias, sendo por isso importantíssima na composição dos blocos históricos hegemônicos e também de seus antagonistas. Em outras palavras, a arte serve também para dominar ou lutar contra a dominação, impor ou lutar contra a imposição. É óbvio que devido à complexidade da sociedade, nem sempre é possível determinar com clareza estas nuances, nem tampouco é sempre que a arte se apresenta nestas dicotomias.

A música e todas as outras expressões artísticas nunca se transformaram tanto como no século XX, principalmente na segunda metade deste intervalo. Deixando de lado possíveis debates sobre este tema, e focando no rock n’ roll, surgido nos anos 50, podemos dizer que a grande revolução presente nesta expressão artística talvez esteja no comportamento: foi o grito de “basta” de uma juventude que não agüentava mais tanta repressão de cunho moral, como aquela experimentada na sociedade estadunidense dos anos dourados. A contestação inicial do rock era comportamental. A politização da música rock ocorreu principalmente nos conturbados anos 60 – tempos de Guerra Fria. O rock se transformou em voz de adolescentes e jovens adultos que não queriam guerras. Embora muito menos embasado teoricamente que a geração beat dos anos 50, o rock sessentista deu seu recado. Nos anos 70, a piração no LSD produziu um rock vigoroso, técnico, mais pesado, e que aos poucos se desconectava da realidade. O resgate da atitude de contestação de todo um modelo social, usando a música, veio com o punk. Há uma dificuldade em classificar o punk como movimento, por não ter um manifesto e uma direção a rigor. Mas a nova estética passava a negar esquemas de produção e comercialização da arte, montados desde que o rock se firmou como voz da juventude – era o “do it yourself”, ou “faça você mesmo”, já mencionado. A produção de arte hardcore (música, fanzines, grafites e afins) nasceu dentro deste padrão, com o discurso de resgatar o que o punk havia perdido: a autonomia para se produzir. Mas, cá entre nós: podemos mesmo chamar a produção hardcore de “arte”? Desde o momento em que o artista plástico Marcel Duchamp, no início do século XX, subverteu por completo o conceito de arte, focando a atitude artística em quem a faz, e não no objeto em si, muita coisa cabe dentro do conceito de arte. Inclusive o hardcore. Mesmo para aqueles que chegam a afirmar que o punk e o hardcore criaram uma espécie de anti-arte, há uma contradição: ao questionar e subverter as estruturas básicas do que era considerado “correto” na música e na moda, o punk e o hardcore criaram seus próprios códigos e padrões. Portanto, sua própria estética.

Então, como encarar a produção de arte dentro do hardcore? Ora, 30 anos se passaram, e o mundo assistiu a uma verdadeira revolução no âmbito das comunicações, dentro de uma perspectiva mais perversa: a globalização. A mercantilização da arte avançou em uma velocidade muito maior nas últimas duas décadas, e com ela a banalização da mesma. A estética punk hardcore, inicialmente criada para resistir culturalmente a sociedade de consumo, foi absorvida por ela. O hardcore, como música e moda (roupas, acessórios), está na TV e na internet como produto de consumo rápido. Este é um efeito esperado dentro do modelo de sociedade que temos. E a grande contradição se apresenta. Trinta anos depois, queremos estar funcionando como engrenagem bem lubrificada do sistema sócio-econômico atual, ou ainda há críticas a serem feitas que possibilitem a sobrevivência do hardcore como cultura contra-hegemônica? Na sua essência, o hardcore nasceu na esteira da resistência ao padrão de produção de cultura de massa. A arte produzida, sobretudo a música, visava desafiar tais padrões.

Chegamos a um ponto crucial, no nosso entender: o referencial do que pode ser a arte, e que tipo dela o hardcore pode adotar. Mercadoria na prateleira? Arma do discurso contra-hegemônico? Atitude niilista, enclausuramento?

Interessante: pode ser tudo isso. O referencial de como se apropriar da arte não está na estética musical propriamente dita. Hoje, usa-se hardcore pra vender CD de telenovela juvenil. Está lá: batidas rápidas, num tempo de 1 e 2, vocais que não primam por técnica, melodias curtas e simples, e mensagens condizentes com o público alvo - meninos e meninas de 10 a 16 anos, aproximadamente. A música é linguagem universal. Não há donos do hardcore. O mercado hoje consome as inúmeras subclassificações do punk numa ótima. E quem consome este tipo de produto tem fins diferentes da proposta inicial destas estéticas musicais: querem consumir entretenimento. Um direito de qualquer pessoa. Deixemos claro que os primeiros punks também queriam se divertir. Mas, havia também o sentimento de querer questionar padrões de comportamento social. Talvez isso possa diferir aqueles tempos e o hoje. A negação da sociedade de consumo se transformou numa celebração à mesma.

Podemos considerar um outro referencial: usar a arte para difundir um discurso de resistência cultural, nas diversas formas que isso possa assumir. Política, ecologia, problemas cotidianos, repulsa a aspectos diversos da cultura hegemônica e mais uma gama intermináveis de discursos. E neste sentido, mais uma vez a estética musical pouco importa: não é necessário fazer música punk pra se criticar ações de Estado, por exemplo. O referencial de como se apropriar da produção artística, e antes disso, de como produzir arte, está em quem faz e em quem absorve a arte. Não é o punk hardcore em si que determina como irá ser a leitura da realidade, e sim a forma como esta estética foi utilizada na produção artística. Escrever um e-fanzine sobre problemas relacionados a “cena” alternativa, que produz contra-cultura à margem de incentivos oficiais, ou utilizar o mesmo veículo para postar a discografia do Fresno? Ambas as iniciativas são válidas, se há público cativo para tais. A intencionalidade é clara nos dois casos.

Se há o desejo de cooptação de mais adeptos para a causa primordial do hardcore – resistir à mercantilização da arte – é necessário que se compreenda que não há donos da música. Não é pela produção pura e simples de música, descolada dos aspectos ideológicos destas questões, que teremos hardcore punk. Outro ponto importante: é a atitude frente a produção de arte que vai definir a função que ela vai desempenhar na sociedade. Isto posto, podemos afirmar que só temos cultura de resistência se temos consciência e concordância com a negação do padrão de “arte-mercadoria”, de consumo de massa. Feita esta opção, que é crucial para avançarmos, o debate sobre os “nós” deste processo deve ser colocado de imediato.

 

Cena: o que seria isso?

 

Comumente, chamamos de “cena” o conjunto de manifestações, interações e relações culturais que envolvem, direta e indiretamente, pessoas ligadas à uma estética artística, seja ela musical, plástica, teatral, cinematográfica, etc. Em uma cena, há a fluência de idéias e a produção cultural é constante, mais ou menos intensa, de acordo com a conjuntura.

Se não temos esta troca de idéias, esse fluxo de conhecimento, a dita “cena” tende naturalmente à estagnação. A produção estaciona e não há a superação, a “eterna novidade do mundo” a que se referiu Fernando Pessoa, no excerto do item passado. Isso posto, a tendência ao tédio mina manifestações que poderiam ser interessantes. A arte só tem sentido de ser se for interpretada/ sentida, e se não há circulação de idéias, não há porque produzir arte. Tomemos como exemplo as artes plásticas: os “rabiscos” de Pablo Picasso no início do século XX são considerados geniais porque inauguraram uma nova forma de se perceber os objetos na tela, algo que ninguém havia pensado antes. Estava inaugurado o cubismo, com base em estudos e mais estudos feitos sobre as obras de percussores do estilo como Cézanne. Estas telas, apresentadas a um leigo de arte, serão apenas um monte de objetos disformes. Porém, ao absorver o significado da obra de Picasso, este mesmo leigo passará a compreender o valor da obra. Poderá não apreciar, mas jamais alegará ignorância sobre o propósito daquela arte.

Assim ocorre com a produção de arte dentro do punk hardcore. Não são apenas folhetos mal editados e diagramados carregados de gírias, são fanzines. Há um contexto que explique o porquê do formato. Não são apenas berros desconexos com guitarras sujas e compasso rápido. É hardcore. Há uma justificativa para se produzir este tipo de arte. Não são rabiscos ilegíveis coloridos no muro, é grafite. Para todas as manifestações artísticas que envolvem a cultura de resistência, há um motivo. E estes “motivos” devem ser pensados por quem absorve a arte. Se a “arte pela arte” toma de assalto as manifestações de resistência a indústria cultural, teremos aí um grande problema: o que servia para ser contra-hegemônico passa a ser somente uma peça desconexa da realidade.

Pensar a produção artística antes, durante e após absorvê-la, é fundamental para que ela continue a ser produzida. A experiência construída trará o saldo final desta absorção: positivo ou negativo. É a partir daí que se dá o crescimento intelectual, a transformação que a arte é capaz de fomentar. E se isso foi realmente positivo, a tendência natural é que se queira mais. É um ciclo, que se fecha com o envolvimento direto de quem produz e de quem absorve arte. Isso é tipicamente uma cena. Pensa-se e se faz a arte, que é absorvida, digerida, pensada, para se querer mais, ou para criticá-la negativamente.

Ver uma apresentação de punk hardcore é uma experiência fantástica, nas primeiras vezes. Não há tempo, dentro do pit, para pensar em arte. É algo que pode ficar pra depois. Mas com o passar delas, esvazia-se o sentido desta manifestação, se não raciocinamos porque elas ocorrem, por exemplo.

 

Levantando aparentes problemas na cena punk hardcore:

 

Se para haver uma “cena” é necessário envolvimento, e para termos resistência a cultura de massa e sua indústria, é necessário compreender de onde veio o punk hardcore, então não é nada difícil identificar alguns dos problemas estruturais da organização desta cena.

Entender o que é uma cena leva consequentemente ao envolvimento ou ao afastamento da mesma. À medida em que surge uma identificação, ou repulsa, com determinada produção artística, é de se esperar um envolvimento direto ou indireto com ela. No caso de identificação, a tomada de consciência como parte de um “movimento” ajuda a solidificar e propagar determinada forma de arte. Dentro da produção contra-hegemônica do hardcore punk isso é fundamental. Chamamos de militância a atitude de se envolver com a cena, no sentido de compreendê-la em sua complexidade.

Como já dissemos, não há arte para lugares onde não há pessoas. Logo, a militância dentro do hardcore punk é primordial. Defesa de causa compreendida. Não se produz arte fora do circuito oficial ou de massa sem militância comprometida. Esta militância comprometida advém de formação ideológica que sustente de forma clara a causa por que se luta. É necessário haver conhecimento de causa, diriam uns. Na outra mão, a produção de arte comprometida socialmente é a ferramenta que a “cena” dispõe para a cooptação de novos adeptos, à medida em que o discurso se propaga e se mostra dentro de uma lógica coerente. Neste aspecto, uma barreira tem se colocado atualmente: na sociedade pós-moderna, causas coletivas têm sido cada vez menos desenvolvidas, e isso trás um reflexo imediato na cena hardcore punk - o “faça você mesmo” tem sido confundido com o “faça o seu que eu faço o meu”. Não é o que NÓS podemos juntos, e sim o que VOCÊ pode sozinho, no conforto da sua casa. Este é um fenômeno típico da globalização, segundo Robert Kurtz. A individualidade apregoada como uma qualidade do novo humano pós-moderno põe em xeque o senso de coletividade, pois não se observa aí nenhuma possibilidade de ganho imediato. Dentre muitos outros fatores, podemos também pensar sobre o impacto da revolução tecnológica em manifestações ideológicas como o hardcore punk: as pessoas lêem cada vez com menos qualidade. Somente textos rápidos, pouco informativos, sumários. Muita quantidade, com horas a fio de internet e games, que não deixam de ser leitura, e pouca qualidade, com quase nenhum livro, jornal ou revista. Destruição conseqüente do senso crítico, tão necessário para alimentar uma resistência salutar à cultura de massa. Em suma: cena completamente despolitizada.

Não entenda aqui política como ação partidária ou institucional de Estado. Qualquer relação de poder entre humanos é política, nos informa o genial Bobbio. Luta melhor quem tem a principal arma de construção de hegemonia: conhecimento. Em uma cena onde se identifica o gradativo descrédito das causas comuns, e a apolitização crescente de seus membros, não é de se estranhar o atual colapso. Ao contrário, é de se supô-lo. Só há coesão, união, quando há identificação das mesmas causas entre o grupo em questão. O hardcore visto somente como uma “revolução pessoal” pode ser entendido como atitude de afastamento da coletividade. Isso seria desastroso e fatal.

Quanto à apolitização, ela é mais perigosa quando a questão do referencial de como se apropriar da arte volta à baila: a compreensão do hardcore punk como ferramenta contra-hegemônica simplesmente não existe, neste caso de apolitização, o que acarreta em contradições patentes. É querer produzir arte marginal e ao mesmo tempo, almejar uma adaptação desta produção ao mercado de massa, adaptação essa que não ocorre porque o discurso ou mesmo a estética são muito rudes para os padrões da indústria cultural. O foco se volta para o mercado de arte produzida em série, o que se mostra um enorme erro estratégico. Ao abraçar a arte pela arte dentro do hardcore punk, joga-se no lixo o principal ganho conceitual desta estética.

A circulação de idéias novas é primordial para a sobrevivência da cena hardcore punk. Não somente resenhas, releases ou links com música para baixar. A circulação de idéias promove a formulação de novos conceitos, que serão úteis para repensarmos a própria cena. O posicionamento ideológico deve ser peça-chave na resistência da cultura alternativa. “Eu não sei o que quero. Eu sei o que NÃO quero”.

 

 

Goiânia Rock City?

 

Nenhum termo é mais estranho à realidade aparente do que este, no campo da cultura: Goiânia Rock City. Sabemos por “experiência de campo” que no caso específico da cidade de Goiânia, a cena rock é sem dúvida uma das menores, do ponto de vista de seu impacto social. Termo surgido no espaço virtual “interneteiro”, foi amplamente divulgado e adotado pelo público que se identifica com o rock e suas manifestações na capital goiana. Mas não há verdade nele.

Há diversas micro-cenas de rock em Goiânia. Isso não significa que são exatamente antagônicas. Ao contrário, há intersecções entre elas por motivos óbvios: um público eclético que freqüenta diferentes ambientes dentro da cena rock, produtores que concorrem pelos mesmos espaços e empresas de equipamento, algumas poucas causas ideológicas em comum, etc.

Dentre estas micro-cenas, a grande maioria delas trabalha com produção de arte voltada para um mercado de consumo rápido, visando a inserção das cenas goianas em um universo mais amplo, de escala nacional, e por que não, internacional. Há produtoras goianas respeitáveis dentro do universo chamado “independente”, que vem sendo o novo filão da indústria de entretenimento ligado à música. Televisão e internet voltaram-se de forma sedenta para a produção artística das cenas desvinculadas das grandes gravadoras. Neste contexto, produtores de arte, especialmente música, tem se engajado com esmero na busca por espaço dentro desta lógica, buscando sustentar o “rock” como um negócio que seja rentável e gere renda.

Num outro prisma, há também micro-cenas. Procuram resistir à absorção do rock pela indústria cultural, para manter a produção artística livre. Por se observar um caráter ideológico mais crítico à lógica de mercantilização da arte, foram chamados até aqui de contra-hegemônicos. E o são. Razões óbvias limitam a circulação da produção deste tipo de referencial artístico: falamos sobre o recrudescimento do senso crítico no que se refere a função social da arte, provocado diretamente pela conjuntura histórica.

Diante destes aspectos, a cena rock em Goiânia pode ser classificada como fragmentada e desconexa. Os pontos de incongruência são maiores que os pontos em comum, por razões aparentes. E não se espera a famigerada “união” dentro da mesma: pontos de vista tão diferentes historicamente tendem a se afastar.

Pensarmos em como as diversas micro-cenas podem coexistir sem se prejudicar é um avanço necessário. A construção de uma agenda conjunta fica aqui como uma pequena sugestão para o crescimento e fortalecimento da produção artística punk hardcore.

Qualquer tipo de sectarismo extremo é desastroso, e aqui evocamos a história, como ciência, para embasar esta verdade. Mas pensarmos uma cena punk hardcore como independente do universo rock restante é questão estratégica de sobrevivência. Não independente no sentido de “isolacionismo”, mas sim no sentido de criar uma base mais ampla de militância, e condições materiais para que a produção artística possa acontecer. Construir conjuntamente o espaço necessário para que a arte punk hardcore possa sobreviver. Pensar em vincular esta estética com o poder público seria decretar a morte dos códigos de valores inerentes à elas. Por isso é necessário a identificação, compreensão e adesão a causa, que só ocorre após a escolha sóbria, consciente desta via.

Há uma “Goiânia Rocks City”. Um caldeirão de diversidade. E isso é bom. Mas batalhar uma estrutura que seja capaz de manter o hardcore punk funcionando nesta cidade é tarefa que já não pode mais esperar. Mantê-lo dentro desta diversidade é importante demais para todos. O diálogo sobre o que a arte pode ser não pode ficar a mercê de apenas uma opinião - a pluralidade que há, com a presença de diversas tendências dentro do rock, enriquece e amplia o debate. Repensar os “nós” da cena hardcore punk seria o primeiro passo para revigorá-la. Esta pequena contribuição apareceu por esta causa. Estão abertos os debates.

 

Referências bibliográficas:

Livros:

ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. Coleção Os Pensadores, São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999.

ALTET, Xavier B. I. História da arte. São Paulo, Ed. Papirus, 1990.

BIVAR, Antônio. O que é punk. Coleção Primeiros Passos, São Paulo, Ed. Brasiliense. 1982.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília, Ed. UNB, 1983.

CHAUI, Marilena. Filosofia. São Paulo, Ed. Ática, 2007.

KURTZ, Robert.O colapso da modernização. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1992.

MÉSZÁROS, István. O século XXI: Socialismo ou barbárie? São Paulo, Ed. Boitempo, 2003.

OSTROWER, Fayga. Universo da arte. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1991.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999.

 

Sítios eletrônicos e respectivos artigos consultados:

Adorno e a indústria cultural, in http://www.urutagua.uem.br//04fil_silva.htm, por Daniel Ribeiro da Silva. Consultado em 25/06/2009.

Antônio Gramsci e a subida ao sótão da filosofia da práxis. In http://www.historia.uff.br/nec/textos/text12.pdf. por Marco Mondaini. Consultado em 03/07/2009.

Cotidiano e arte em Lukács, in www.scielo.br, por Celso Frederico. Consultado em 01/07/2009.

Hardcore punk, in www.wikipedia.org. Consultado em 12/07/2009.

 

Revistas e respectivos artigos consultados:

COSTA, Sílvio. Classes, intelectuais, partido e hegemonia: uma leitura preliminar em Gramsci. In “Revista Estudos da UCG”, v. 23, p. 21 a 44, Goiânia, Ed. UCG, 1996.

VIANA, Nildo Silva. Sociedade Global: ficção ou realidade? In “Revista Teoria e Práxis”, nº 6, p. 10 a 17, Goiânia, publicação independente, 1995.

 

  • André Lopes "Alemão" é professor de História e baixista da banda Ímpeto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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